O homem esquartejado

A oposição

Um homem que, ao longo da vida, acumulou muitos inimigos, sempre buscou ampliar sua influência através de favores. Ele sabia que, culturalmente, as pessoas raramente se voltam contra a mão que as ajuda. Regularmente, oferecia cestas básicas, remédios e quantias financeiras a quem precisava, e, à medida que aumentava seus favores, crescia também sua imagem pública de homem bondoso, de coração generoso e espírito nobre. Por trás dessa fachada, no entanto, escondia-se um comportamento frio e calculista.

Mesmo aqueles que lhe desejavam a queda acabavam sendo beneficiados em momentos de desespero. Quando recorriam à sua benevolência, ele, sempre solícito, acionava sua vasta rede de contatos — políticos, empresários e advogados —, ampliando assim sua capacidade de oferecer favores estratégicos.

Bastante conhecido, sempre que chegava a uma solenidade era logo anunciado, e todos ficavam maravilhados com sua tão honrosa presença. Seus inimigos sabiam o quanto lhe era útil publicamente, além das situações mais sigilosas, daquelas que apenas alguém com poder e influência podia valorizar.

Era odiado por muitos, mas conseguia calar até mesmo seu arqui-inimigo, que se via contrariado por sua envolvente prosa. Nela, dava aos homens orientações para a vida, principalmente aos jovens, para que não se perdessem em um mundo hostil e de difícil trajeto. Sempre aproveitava para firmar: todo homem, em algum momento da vida, precisa de um favor, e quão terríveis são aqueles que se voltam contra a mão que ajuda.

A crescente rejeição ao Doutor se espalhou por toda a parte. Alguns juraram-lhe vingança, daquelas que se firmam publicamente com os dentes trincados. Mesmo os que lhe eram mais leais estavam envolvidos por um sentimento de desejo por sua queda.

Em muitas situações, intratável, cometeu equívocos sem remorso, porque não era homem de buscar o perdão e agia com desprezo às pessoas, quase sempre de forma imperativa. Coitado daquele que não aceitasse as suas ordens: logo era considerado um imprestável, alguém sem serventia para agir conforme a importância e a influência de um homem que tinha o poder de voltar todos contra um de seus inimigos, os quais cresciam em desejo por sua queda e por seu trono.

O seu lugar de poder era cobiçado, um intenso objeto de desejo entre os seus opositores, que cogitavam o que fariam se o possuíssem. Alguns diziam que um único homem não poderia deter tanto poder, e que o domínio deveria estar nas mãos de um grupo, dos “salvadores”, aqueles capazes de trazer a ordem e a mudança necessárias. O ódio contra o Doutor cresceu a tal ponto que o povo passou a ser convocado, um a um, para uma terrível disputa.

Muitos se mobilizaram para derrubar aquele homem do poder, e até mesmo os que o admiravam foram levados a nutrir ódio mortal, inflamados pelos erros que ele havia cometido. O alvoroço se espalhou entre aquelas pessoas; ameaças e intrigas se ergueram, e o povo viveu a mesma disputa dos ávidos por poder, enquanto a escuridão, como uma praga, invadia seus corações.

O Doutor não foi capaz de suportar aquele clima de crescente oposição, pois a coletividade pode tolerar maus-tratos sob a égide de um perverso que controla, pelo medo, alguns indivíduos ou grupos, enquanto reforça a imagem dos perigos de se opor à sua força. No entanto, quanto mais os maus-tratos se intensificam, mais a oposição cresce, especialmente quando se atingem questões básicas da vida. Isso pode ser mortal para qualquer líder.

O Doutor cometeu erros terríveis, e sua insistência em não lidar com as consequências de seus atos minava silenciosamente seu poder, como uma peste sorrateira que se espalha enquanto todos dormem, na esperança de dias de paz.

O desejo por sua desgraça se espalhava, os dias de sua vida escoavam rapidamente, e quanto mais o tempo passava, mais seus erros invadiam os corações, incitando com grande furor a vingança. Sua crueldade deveria ser punida a qualquer custo. Contudo, era necessário atraí-lo até o lugar da punição.

A morte 

Quando chegou ao lugar preparado para a sua punição, o doutor estranhou por que o povo não o ovacionou como antes, até mesmo os jovens, sempre lembrados em suas falas, que lhe demonstravam admiração, receberam-no cheios de ódio. Estranhou o fato de um homem ter trancado a porta de entrada e de as saídas estarem fechadas. Após mirar os semblantes dos ali presentes, entendeu que se tratava de um acerto de contas, porque a ira estava cravada em suas faces. 

Um homem como ele era capaz de reconhecer, em função de tantas vidas que havia ferido, quando aquele que busca a vingança está prestes a atacar com golpes mortais. Contudo, não é possível esconder completamente todos os atos de um homem, e alguns dos atos daquele que se preparava para ser punido podem ter sido corretos, pois "nenhum homem é um completo demônio".

Mas o estágio a que tudo chegou e o peso dos seus erros eram capazes de nutrir uma ira pronta para calar aqueles dispostos a lhe defender. Alguém tentou lembrar que era o Doutor, aquele que se sentou à mesa, que fez o bem para muitos dos que estavam presentes, que ajudou até mesmo os seus mais ferrenhos opositores, mas a maioria estava irredutível, decidida pelo ato de vingança. 

Em silêncio, enquanto todos o observavam, focou naqueles a quem socorreu em momentos de angústia, lembrou de quando lhes ocultou os erros para não serem punidos, quando os protegeu por serem parte de seu grupo ou de seu jogo político, em uma tentativa perigosa de buscar o bem alheio por meio de um ato de maldade. 

Finalmente, saiu em sua própria defesa e pediu para que lembrassem dos favores, que o homem não pode se voltar contra a mão que abençoa. Mas não percebia que a esta altura a situação era insustentável. E, de súbito, um homem, tomado por grande ira, correu em sua direção e lhe feriu o rosto. 

O Doutor se desequilibrou e foi ao chão, e outro golpe lhe foi doloroso, alguém lhe chutou a cabeça enquanto tentava se reerguer. Caiu novamente, o sangue escorreu por seu rosto, e pensou: "olho por olho, sangue por sangue". Em seguida, dois homens saíram em sua defesa para conter os ânimos daquele lugar, porque ainda não tinham decidido a forma de sua punição. 

Um homem, dos que buscam o seu trono, tomou à frente e pediu para que considerassem o que tinha a dizer: este homem feriu muitos de nós. A sua perseguição foi implacável contra os que não seguiam a sua vontade, e mesmo quando tentávamos a paz, ele buscava, por seus meios escusos e imorais, derrubar a reputação e levar à humilhação e ao desprezo. 

A maldade, normalmente escondida em seus atos, era a fonte da sua aparente bondade. Ele é o símbolo do nosso sofrimento, é a personificação da nossa dor, de maneira que se tornou insuportável a sua presença, e sabemos que a impunidade o vestirá publicamente, porque ninguém é capaz de trazer-lhe a devida punição, uns por causa de covardia, e outros por serem cúmplices de seus atos ou devedores de favores. Vamos matar o Doutor e esquartejá-lo, para que todo o mal que representa e realizou seja com ele eliminado. 

Todos ficaram perplexos diante de um ato de tamanha crueldade. Que tipo de mente poderia sugerir tal vingança? A morte rápida seria como uma maldade quase instantânea, mas matar e impor desrespeito a um corpo sem vida era algo difícil de suportar. Todavia a coletividade pode chegar a alguns lugares sombrios, e nem sempre uma âncora é capaz de manter as pessoas distantes dos mais terríveis atos de vingança que não devem ser seguidos. 

Aquela proposta, talvez, tivesse sido rejeitada em um outro momento de conflito, algo comum aos homens, mas haviam chegado a um lugar escuro demais para se opor ao engano do mal, que se enraizou em seus corações como possibilidade de justiça, e confundiu seus juízos, impossibilitando a razão de agir corretamente. Uma fogueira estava em seus corações, quando não eram capazes de apagar nem mesmo uma fagulha. 

Qualquer argumento insano seria suficiente para satisfazer a dor e a sensação de justiça em suas mentes, ainda que isso lhes custasse a própria humanidade, lançando-os em uma vergonha que nem seriam capazes de reconhecer, pois julgavam ter vencido o mal, quando, na verdade, era o mal que os dominava, transformando em suas mentes um paraíso e um desespero ao mesmo tempo.

Após romper os limites da sobriedade, mataram o Doutor, e o povo, tomado por grande alvoroço, esforçou-se para provocar mais dor ao corpo já morto. Era como se a dor pudesse alcançar a carne já sem vida, porém era a vida daqueles que ainda respiravam estava sendo destruída a cada golpe sobre aquele corpo morto. A vingança, de maneira intrigante, matava todos ali presentes. 

Alguns, em lágrimas, manchados com o sangue daquele homem em seus rostos e suas roupas, acreditavam ter alcançado a justiça, posto um fim a toda a dor de seus corações. 

Contudo, aquele ato de crueldade teria o seu preço: aquelas pessoas nunca mais seriam as mesmas, porque a humanidade pode ser perdida sem que sejamos capazes de perceber. A vingança que nutriram no mais profundo da alma os reduziu a um semelhante estado de escuridão como viveu aquele homem, que feriu e magoou muitos. 

Algumas pessoas, perdidas de si mesmas, tomaram partes do corpo esquartejado e jogaram pelas ruas, outras lançaram para os cães e alguns levaram para suas casas, tomadas pela loucura que as possuiu. Naquele estado a que tudo chegou, a humanidade se revela uma virtude que requer um alto preço para ser vivida.