Uma das características mais marcantes da realidade é sua capacidade de sustentar a utopia. Porém, nem sempre as pessoas percebem que suas narrativas sobre o mundo não são a própria realidade, mas apenas construções mentais acerca do real (Platão).
A utopia é apenas uma construção imaginária, não a verdade — que pertence à realidade. Mesmo assim, a própria realidade permite que as pessoas elaborem versões e se convençam de que ignorar ou minimizar o real é aceitável. Assim, ainda que na escuridão ou na cegueira, algum progresso parece possível.
Nesse ambiente narrativo, em que há benefícios práticos e motivacionais, apenas um esforço racional permite perceber as incongruências com a realidade.
A partir dessa construção, podemos gerar ações moralmente aceitas, como não revelar aos trabalhadores a onda de insatisfação real em uma empresa, de modo a mantê-los motivados e confiantes no futuro. Alguns podem justificar internamente que agir assim é necessário, mesmo que isso envolva explorar contextos tóxicos ou manipular percepções.
Apenas a realidade permite o pleno exercício da virtude e da verdade. A utopia, mesmo quando ludibria mentes com fantasias ou promessas de êxtase futuro, não pode gerar comportamento virtuoso e seguro, pois apenas o conhecimento verdadeiro do real é capaz de produzir o bem (Sócrates), em uma perspectiva racional.
Por meio de construções mentais, membros de uma comunidade religiosa podem enganar a si mesmos sobre as bênçãos de Deus, especialmente em contextos onde se busca os benefícios de sua bondade. Para não confrontar a dura verdade, os indivíduos criam enredos que sustentam suas ações, evitando encarar a realidade que não conseguiriam suportar.
No filme Questão de Honra (1992), o Coronel Nathan R. Jessup, interpretado por Jack Nicholson, durante o julgamento em que Tom Cruise atua como advogado, após a morte de um soldado sob circunstâncias questionáveis, diz: "você não pode suportar a verdade".
Nas empresas, na política e nas igrejas, muitas vezes um gênio mal impõe silêncio, quando, em favor de uma narrativa contrária à verdade, corrobora a afirmação: as pessoas não poderiam suportar a verdade.
Dessa forma, desenvolve-se uma cultura em que o engano é tolerado sob a justificativa de manter ordem e paz, produzindo certos benefícios (Maquiavel). No entanto, isso coloca a sociedade em tensão com a verdade e com o bem, que são necessários para uma consciência justa e virtuosa.
Em muitas igrejas, o engano testa a soberania divina, sob a ideia de que a permanência no poder seria uma aprovação da divindade. Assim, engana-se até que a divindade, extremamente tolerante para que vidas não sejam perdidas, reprove os comportamentos. Porém, a soberania também governa os tolos, o que por si só é um sinal da reprovação.
Na política, contexto em que os meios não importam para os fins, o engano é parte natural do jogo, que busca o poder (Max Weber), explorando convenções e acontecimentos. Engano, desinformação, narrativa e ideologia tornam-se instrumentos para construir uma realidade favorável à conquista e manutenção do poder nesse ambiente.
Em algumas empresas, como as pessoas dependem da renda para sobreviver, o engano existe como mecanismo para manter a coesão e motivar aqueles que aceitam viver na utopia, enquanto pune os que buscam a verdade. Nesse sentido, o engano sustenta a utopia, tornando-a funcional.
No filme Matrix (1999), Morfeu diz a Neo: “Tudo o que ofereço é a verdade. Nada mais.” Na sociedade real, contudo, prevalece a mentalidade de que a verdade nem sempre pode ser suportada. Assim, o engano não é apenas tolerável, mas algo moralmente aceitável como sustento de narrativas.
O engano, mesmo quando justificado como meio de sustentar a utopia, perpetua injustiças, legitima comportamentos oportunistas e mantém estruturas desequilibradas. Dessa forma, tanto a utopia quanto o engano afastam os indivíduos da verdade, que é a única fonte de conhecimento seguro, virtude e justiça.
Uma sociedade baseada em ilusões e manipulações não pode prosperar de maneira ética ou sustentável, e, a longo prazo, os custos de manter sonhos falsos superam quaisquer benefícios momentâneos que possam proporcionar.
Apenas a verdade, a virtude e a realidade podem nos levar a um lugar seguro, em que os fatos são claros, fundamentados em uma cosmovisão que permite conhecimento verdadeiro, que pune os maus atos, alcança a justiça e estabelece uma moral capaz de conduzir a uma vida virtuosa.
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