Todo mundo decidiu fazer uma reforma. A do apartamento de cima já dura há mais de 20 dias. O viaduto Sonrisal piorou novamente o trânsito. Servidores saÃram em marcha contra a reforma administrativa, e a Reforma ainda impressiona, por ter dado certo. Há décadas, desde a redemocratização, tentamos mudar o Planalto e a Câmara, mas sempre falta muito.
A voz do povo sempre avisou: a reforma nunca acaba. Meses depois, ainda há poeira para tirar — impregnada nas paredes, nas cortinas e atrás do sofá. PolÃticos são sempre uma sujeira para se limpar com o voto. Jogamos água, passamos óleo na porta, mas a cara continua suja. Ainda não inventaram algo que realmente limpe o Brasil da sujeira espalhada por toda parte.
Se mexemos um pouco, a poeira sobe — e movemos toda a nação para assistir à limpeza. O circo está armado! Peguem a pipoca, troquem de canal, na tv fechada ou na aberta. Só não podemos acompanhar pelo streaming ainda — mas logo poderemos dar “curtidas” em escândalos transmitidos diretamente das plenárias do Congresso.
Reformas pequenas são uma lástima. Parecem rápidas, coisa de dias, mas logo se estendem por semanas ou meses. O que era apenas um assento sanitário logo se transforma em um banheiro completo. Por que nunca começamos do jeito certo? Isso é coisa de reforma — há coisas que não mudam.
Na semana passada, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em visita à Indonésia, declarou em entrevista à imprensa que “os traficantes são vÃtimas”. Logo, ou os usuários são os culpados, ou não há culpados. DifÃcil! Mas não foi a primeira vez que falou sobre os consumidores. No começo de 2025, o presidente afirmou que lhes faltava sabedoria, que não deveriam comprar os produtos caros para que o preço baixasse.
A filósofa Márcia Tiburi, em seu artigo “A lógica do assalto”, argumenta que há uma demonização da lógica, o que impede que se busque o entendimento racional do fenômeno do assalto — o que não significa que quem analisa esteja defendendo o criminoso. De fato, temos que reconhecer a importância da lógica para a explicação da realidade social.
O problema é que toda conclusão lógica depende de pressupostos lógicos, e o desenvolvimento do artigo deixa claro que a crÃtica marxista é usada para interpretar uma realidade material, na qual a moral, as leis e as regras são construções das relações de produção. É o velho argumento de que a classe dominante cria uma estrutura para dominar a classe operária.
Na visão da filósofa, os neoclássicos fomentam o “ter”, ou seja, o acúmulo de bens, e não o “ser”. Assim, o assalto seria parte estruturante do sistema, já que a classe trabalhadora foi expropriada dos meios de produção e é explorada para gerar lucros aos capitalistas — sendo o bem a materialização do trabalho.
Trocando em miúdos, o que a filósofa tenta nos dizer é que a crÃtica marxista não afirma que é moralmente correto assaltar, mas que o assalto é parte integrante do sistema capitalista, ou seja, a análise sai da individualidade e passa para a estrutura do sistema. Logo, os criminosos, que subtraem do patrimônio privado — protegido por leis criadas pela classe dominante — agem de acordo com os incentivos da própria lógica do capitalismo. Dessa maneira, movidos pelo desejo de ter, o crime se torna inevitável. Engenhoso, não?
Sim, é realmente engenhoso, e intelectualmente fundamentado. Mas essa conclusão só faz sentido se eu aceitar os pressupostos de uma realidade material e, dentro da interpretação do materialismo dialético, entender que as ideias, a religião, a moral, as leis e os costumes são consequências da dinâmica das relações de produção, da base econômica.
Um idealista ou um cristão, por exemplo, não precisa concordar com isso, já que seus pressupostos morais são estabelecidos de maneira universal, e não resultam da base econômica.
São os pressupostos lógicos que definem os culpados — e, no caso dos cristãos, ou mesmo de um ponto de vista socrático, os criminosos são culpados por não agir de acordo com o bem, o qual não decorre das relações materiais. O problema dos marxistas, a partir de pressupostos materialistas, é olhar para a ideia de bem como uma invenção da classe dominante para manter o poder, resultado de um determinismo material.
Dessa maneira, seguindo essa análise, o sistema é o grande culpado — e todos são suas vÃtimas. Na tentativa de explicar racionalmente a realidade, cria-se um pressuposto lógico que dispensa a disputa e elimina a controvérsia: tudo passa a ser consequência natural do sistema. E quando a narrativa domina até mesmo a capacidade de pensar, fala-se como o presidente Lula: “traficantes são vÃtimas”.
Desde Lutero, a reforma passou, o mundo caminhou, e o Brasil continua em obras básicas.
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